quarta-feira, 3 de junho de 2009

AQUI PAPAI, FOI TUDO QUE CONSEGUI !

Era setembro, a Lua começava a surgir no horizonte e algumas nuvens carregadas davam uma conotação de tristeza. Sentado na porta do barraco Joaquim contemplava a bela apresentação espacial enquanto recordava o passado e analisava a situação em que estava vivendo com a família.
Morando num barraco coberto com lona de plástico preto, a semelhança das habitações dos sem terra nas margens das rodovias, com um único cômodo onde todos viviam e dormiam. Maria, sua mulher, e seus filhos, Ana Maria de quatorze anos e José Roberto de dezesseis. Joaquim dormia ao lado da mulher, numa esteira feita de taboa, estendida no chão de barro batido. Ana Maria, filha mais nova, dormia numa tarimba de vara e José Roberto, seu irmão, debaixo.
Seu Joaquim pouco trabalhava, fazia biscates na feira, descarregando verduras nas quintas e sextas feiras. Ganhava pelo que fazia. De alguns feirantes recebia restos de feira, pedaços de abóbora, chuchu murcho, quiabos duros com as pontas quebradas. Dos marchantes ganhava ossos, restos de carne, cabeça de boi e de porco, quando sobrava, e algumas vezes, infuso de fato. Ele juntava tudo em um saco de batata usado e no fim da tarde jogava no ombro e seguia rumo à sua moradia, na favela do Alto das Pitangas.
Com o dinheiro que ganhava comprava farinha de mandioca, fubá de milho, feijão, ovos, sal e quando sobrava, açúcar e café. Era a sua feira para a semana. O filho José Roberto zanzava pelas ruas em busca de trabalho na construção civil, mas a idade não permitia. Limpar quintais, jardins, coisas assim era o que conseguia fazer. Ganhava quase nada e o pouco que ganhava levava para casa e entregava à sua mãe.
Já, Ana Maria saía quase todas as noites para estudar no colégio Estadual e chegava em casa muito tarde. Quando o pai cobrava, justificava a distância e algumas vezes, dizia que dormia na casa de uma colega amiga para estudar matemática e inglês. Dizia que tinha muita dificuldade com a matemática e o inglês e que sua amiga era muito boa. Assim ela justificava chegar ao amanhecer do dia, embora não fossem todos os dias, mas muitos. Sua mãe sabia de tudo, pois recebia a féria da noite e com o dinheiro compra o que faltava: óleo, temperos, gás ou carvão etc. A vida de seu Joaquim estava insuportável, miséria absoluta. Vivia nervoso com aquela situação nunca vivida, nem imaginada. Não se conformava. Começou a beber, mas logo deixou. Tentou ser o homem que era quando trabalhava na roça. Teve um único emprego durante toda a sua vida. Era amigo do patrão, dos filhos, dos trabalhadores que viviam sob seu comando e orientação. Sabia quebrar cacau como ninguém e desafiava todos. Na sua caixa tinham sempre dois tiradores, pois era rápido e seguro. Quando pegava a roça de cacau pele de ovo, colhido na semana, ele quebrava vinte caixas, quando a média dos outros não passava de 14, de 18 quilos. Certo dia, um domingo, tomou a decisão de visitar seu ex-patrão na esperança de retornar ao trabalho na fazenda, pois soube, na feira, que êle estava clonando e que tudo ia muito bem. O seu sonho e todas as expectativas eram de um dia voltar para a fazenda onde havia nascido e gerenciado por muitos anos, responsável por quase todos os pés de cacau, de banana, de jaca, de erythina e de tudo que tinha na fazenda. Ele conhecia todos os pés de cacau. Os que davam frutos grandes, casca grossa e poucos caroços e os pele de ovo, os parás, os híbridos. Ele distinguia todos. No caminho tortuoso, subindo e descendo serras que conhecia pedra por pedra, as de ponta, os tocos, as escorregadeiras, os buracos feitos pelos pés dos animais nos invernos rigorosos, ele tinha tudo na memória. Nunca pisou num espinho, nem foi picado por cobra. Ele era elegante e forte. Nas brincadeiras de armazém ele mostrava sua força levantando três sacos de cacau de quatro arrobas cada um.
Pelo caminho com muita esperança de ser convidado para voltar a trabalhar, ele se recordava dos tempos de criança brincado com os filhos do patrão, tomando banho no ribeirão quando chovia muito e enchia. Ele lembrava das jangadas que fazia com troncos de bananeira presos um aos outros com espeto de pau e amarrados com cipó caboclo. Ele ria das lembranças. Recordou a festa de São João quando conheceu sua mulher na fazenda do vizinho, Antonio. Ele tinha boas recordações e muita saudade dos dias em que vivera na fazenda Boa Esperança.
Na entrada, quando passou da divisa começou a perceber que tudo estava mudado. O pasto sujo, muita malissa, pouco capim. A estrada parecia que não passava gente ou animal, há muito tempo. Verificou que a estufa não funcionava. A porta do forno despencada, as seis barcaças mostravam fortes sinais de abandono. Algumas, com as corredeiras caídas dentro do mato. Na avenida de oito casas não havia viva alma. Portas e janelas abertas e quebradas. O telhado de algumas já havia despencado. Telhas quebradas por todo canto. Uma mula velha com as orelhas caídas e cheias de carrapatos, se aproximou dele como que a pedir socorro, dizer alguma coisa, explicar a desgraça que se abatera sobre a Zona do Cacau. Verificou que do bueiro da cozinha da casa grande saia fumaça, logo, havia gente, concluiu ele. Próximo à entrada da casa, cheia de mato, foi recebido por um cachorro gué, magro, sarnento latindo e rosnando, mas sacudia o rabo como quem estava conhecendo o visitante.
Seu velho patrão está sozinho. Sua mulher havia morrido há meses. Os filhos partiram e não davam notícias. A casa estava suja, empoeirada e até o crucifixo que ficava de frente para a porta, estava quebrado, faltava o braço direito de Jesus.
Depois dos cumprimentos Joaquim abriu o diálogo. - Onde estão D. Margarida e os meninos? Desde que saí daqui não tenho tido notícias de ninguém.
Manoel, como era conhecido, baixou a cabeça e com a voz um tanto trêmula disse: - minha Margarida se foi. Passou uns tempos emburrada, não falava com ninguém, não respondia o que se lhe perguntava, não comia, dormia muito pouco, andava pela casa a noite inteira murmurando. Ninguém entendia o que ela falava. Levei ao médico do posto várias vezes, até que um dia fui atendido. Ela não respondia nada que o médico lhe perguntava. Contei ao doutor o que estava se passando. O médico abriu sua gaveta e nos deu umas amostras de um tal prosaque e disse que voltasse assim que o remédio terminasse. O remédio ela nunca tomou, jogou pela janela. Ela não tomou uma única pílula. Não comia, ficou fraca. Caiu na cama, só dormia e não mais se levantou. Um dia de sábado eu me preparava para ir para a cidade notei que ela estava imóvel. Não respirava, o corpo estava frio e os braços duros. Ela havia morrido. Morreu sozinha, sem vela. Que morte triste.
Entrei em desespero, sozinho nesse casarão. Só não fiquei louco por que Deus não permitiu.
- Patrão, disse seu Joaquim: a vida está muito difícil. Desde que saí daqui, não encontro um emprego de carteira assinada. Biscate ali, biscate acolá. E nem sempre biscate encontro. Moro com minha mulher e filhos num barraco que dá dó. O senhor não acredita o que tenho passado. Sou um dos mais de 150.000 que a vassoura-de-bruxa desempregou e levou para a linha abaixo da miséria.
Antigamente, não sei se o senhor se lembra, quando me dava um envelope com algumas chapas para votar em seus amigos, sempre fui fiel, sempre votei com o senhor.
- Você ainda freqüenta a reunião do seu sindicato? perguntou seu Manoel. O seu sindicato é forte, tem milhares de associados e todos pagam as mensalidades, mas não tem feito muito em proveito dos desempregados. O meu sindicato, Joaquim, não sei onde fica. Quem é o presidente. Nem sei se ainda existe. Soube que está na mão da família dos Pereira há mais de vinte anos. Se tem eleição, ninguém sabe. Deixei de pagar. Deixaram de me cobrar. Eles nunca gostaram de mim, eu cobrava, eu questionava, eu procurava saber das eleições, dos candidatos. Quando ia mudar. Essas perguntas eles não gostavam de ouvir. Acho que foi por isso que procuraram me afastar. Não pago, não sei onde está funcionando, nem se está, e se tem presidente. Quando serão as eleições, quem será o candidato, o que estão fazendo. Nada disso eu sei, Joaquim. E o seu como está?
Patrão vou lhe ser sincero. No meu se fala muito de agricultura familiar, mas não tenho terra. Estou fora. Dizem que o Banco do Brasil e o do Nordeste estão largando dinheiro a rodo. Que os juros são baixos e o prazo e longo e ainda tem carência. Isso não chega para os 150.000 desempregados. Mesmo assim, patrão, dizem que poucos pagam, pois o módulo econômico é incompatível com as necessidades de uma família.
Na última reunião foi uma festança. Teve bebida, churrasco e palestra. O candidato a deputado, que é o nosso deputado, prometeu tanta coisa para a gente que pode até sobrar para os fazendeiros. Ele disse que vai haver emprego para todos, que vai zerar a fome, que vai aumentar a bolsa família, a bolsa barriguda e que ainda pode criar novas bolsas.
Ele apertou minha mão. Eu nunca tinha apertado a mão de um candidato. Ele me abraçou e disse no meu ouvido: vamos vencer e se vencer teremos tudo, tudo mesmo. Eu, como todos os trabalhadores, ficamos encantados com as promessas dele. Vamos todos votar nele, vai ser uma vitória de arromba. E o seu sindicato apóia algum candidato? Se o senhor não tem candidato, vote no nosso. Ele vai solucionar o problema da crise do cacau. Aqui está o retrato dele, o número e a sigla do partido.
Deu meio dia e a barriga anunciou que a fome chegou. Manoel se levantou apoiado num porrete de biriba, se arrastou até a cozinha, atiçou o fogo de lenha e pegando dois ovos, disse para Joaquim: - naquela moita tem uma galinha botando. Se Sultão, (o cachorro gué) não comeu deve ter alguns. Sultão, agora, deu para comer ovos. Come quase todos. Eu tenho que ficar atento quando a galinha canta se não ele chega primeiro.
Joaquim localizou a moita e pegou dois dos três ovos, deixei o indez para a galinha não mudar o ninho.
Seu Manoel recebeu os dois ovos e os fritou numa gordura velha que estava na caçarola esfumaçada e em seguida colocou farinha de mandioca e pimenta malagueta. Fez uma farófia, dividiu irmamente e foram para a sala onde tinha uma mesa com restos de comida e pratos sujos. Manoel empurrou tudo para um canto da mesa e sentaram. Comeram em silêncio absoluto como quem não esta aceitando aquela situação. Beberam água e voltaram a conversar na varanda. Manoel disse: - Joaquim tenho açucar, mas não tenho café. Você aceita um chá de folha de laranja d’água. Tire algumas folhas ali que vou esquentar a água.
Joaquim se dirigiu para o pé de laranja, quando se deu com uma cobra grande, malha de sapo. Gritou: uma cobra, não posso matar. Lá no sindicato disseram que o IBAMA não permite matar cobra, que é crime ambiental.
Manoel irritado pegou seu porrete de biriba e saiu em direção à cobra dizendo: esses aloprados defendem as cobras porque nunca foram picados por uma. Semana passada perdi o último garrote que restava. Guardava para passar o paradeiro. Agora, não sei como será. Cacau não tem, o feijão deu gurgulho, não sei Joaquim, o que será de mim no paradeiro. Você se lembra como morreu seu primo quando foi picado por um pico de jaca? A garrafada da Margarida não o salvou. Morreu tremendo, botando sangue pelas ventas. Nunca tinha visto uma morte tão triste. Esses ambientalistas de ar condicionado, que nunca visitaram o campo, vivem sem trabalhar, apropriando-se dos recursos das ONGs, fazendo discursos vazios sem apoio científico, iludindo a todos e vivendo numa boa, sem calos nas mãos.
Pegaram as folhas de laranjeira, fizeram o chá, tomaram e a tarde começou a cair. O Sol já perto do horizonte quando Joaquim tomou a decisão de voltar. Sem o emprego almejado, sem esperança de voltar para a roça, mas com muita preocupação. Não havia deixado nada para a família comer, voltava com as mãos abanando e sem esperanças.
Em casa mais uma noite de jejum. Apenas um cafezinho que o vizinho, outra vitima da vassoura-de-bruxa, ofereceu.
A sua filha Ana Maria se preparava para mais uma noite fora de casa. O que essa menina vai fazer na rua quase todas as noites? Perguntou Joaquim a sua mulher. Ela resistiu em dizer. Joaquim afirmava: você sabe, diga. Você nunca escondeu nada de mim, fale a verdade. Aí D. Maria abriu o jogo. Ela sai para caçar. Caçar o que na cidade, interrogou Joaquim. D. Maria explicou, é uma gíria, ela vai procurar homem para vender seu corpo e trazer algum dinheiro para casa. Joaquim parou, baixou a cabeça, sentou no batente do barraco. Não dormiu, ficou imóvel durante a noite toda, seu pensamente não tinha norte, estava enlouquecendo com aquela notícia. Minha filha, com quatorze anos é uma prostituta. De quem é a culpa? Está vendendo seu corpo para trazer dinheiro para casa, que miséria é essa, meu Deus?
Seu Joaquim começou a ordenar o seu pensamento já pela madrugada. Interrogava a si mesmo. Se os sindicatos dos fazendeiros fizessem como os dos trabalhadores indo de fazenda em fazenda sindicalizando, politizando, esclarecendo, discutindo os problemas da categoria e elegendo legítimos e comprometidos representantes, já não teriam encontrado solução para a crise do cacau? Seu pensamento vagava, levantava hipóteses, mas sempre lembrava do que o seu ex-patrão lhe disse: Os sindicatos dos fazendeiros, quando existem, estão nas mãos dos carrapatos descomprometidos, incompetentes, irresponsáveis que não se desprendem nem com creolina. Lutam de unhas e dentes para permanecer. Na Federação da Agricultura e Pecuária é a mesma coisa. Os sindicatos estão atrelados ao grupo dominante e não tentam mudar o comando. Está tudo em casa, pensou Joaquim.
Enquanto fixava seu pensamento na política ou em soluções políticas para a crise do cacau, sua filha apontava na esquina, andando devagar, cabeça baixa, pulando o esgoto que corre a céu aberto de ponta a ponta da favela. Joaquim pensava que seria melhor não saber de nada, mas já que sabia, tinha de enfrentar a situação com determinação. A filha se aproximou dele e disse:- Aqui, papai foi tudo o que consegui.
As lágrimas tomam conta de seu rosto. Parecia o rio Cachoeira na cheia de quatorze. Permaneceu entorpecido, nem um suspiro, nem uma palavra, só lágrimas, muitas lágrimas.
D. Maria recebe o dinheiro da filha com a cabeça baixa, também, em lágrimas, pensa no seu passado como trabalhadora rural quando não lhe faltava nada. Daí, sai para o barraco onde vende pão e mais algumas coisas. Enquanto ela providencia o café da manhã, seu Joaquim sai de sua posição estática, entra no barraco e percebe que seu filho de dezesseis anos está colocando uma faca na cintura. Ele pergunta: - para que isso menino? José Roberto responde: minha irmã trouxe o café eu vou trazer o almoço e a janta. Amanhã vou trabalhar naquela construção. O mestre de obra me garantiu desde que eu declare que sou maior de idade. Saiu com passos firmes e determinados. Seu Joaquim ainda teve tempo de perguntar para que essa faca. Ele respondeu: só a usarei se for extremamente necessário.
Quando José Roberto voltava de sua missão passou por um carro da polícia estacionado na entrada da favela. Não deu importância. Era uma cena corriqueira, mas quando dobrou a esquina que dava para o seu barraco percebeu um aglomerado na porta de seu barraco. Muita gente e a polícia também.
Com duas sacolas de supermercado nas mãos, uma continha farinha e feijão e na outra sal, imaginou que a caixa do supermercado havia lhe identificado e avisado à polícia. Ele poderia ter se livrado das sacolas, se apresentar de mãos vazias, mas preferiu leva-la para casa. Lá estavam seu pai, sua mãe e sua irmã com fome. Ele poderia ser preso, não importava, mas o alimento deveria chegar ao destino. Deu várias voltas pelas ruas estreitas e lamacentas da favela para chegar ao fundo do barraco. Para isso teve de saltar uma cerca do vizinho que o flagrou dentro do seu quintal e disse: é você o ladrão de galinha e de ovos? Seu pai está lá dentro com a língua de fora pendurado numa corda e você roubando galinha, que coisa feia!
José Roberto deu dois passos para frente, entregou as sacolas a D. Tereza (dona do quintal) e permaneceu estacado por instantes, recordando o que seu pai, certa vez, lhe dissera numa reunião do sindicato: - se os sindicatos dos fazendeiros fizessem o que os dos trabalhadores fazem, aglutinando todos e elegendo legítimos representantes e numa frente ampla de trabalhadores e fazendeiros bloqueassem estradas, acampassem em repartições, no Banco de Brasil e Nordeste, e impedissem descarregar o cacau importado a mídia nacional tomava conta e o problema da Zona do Cacau já teria sido solucionado e os 150 mil trabalhadores não estariam na miséria e meu pai não estaria morto. Caiu em prantos.
Se qualquer passagem desta crônica se assemelhar a fatos de pessoas vivas ou mortas ou de alguma instituição física ou jurídica é apenas mera coincidência.
DÍMPINO CARVALHO
Postado na Lista do Cacau , sábado, 30 de maio de 2009

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