terça-feira, 4 de agosto de 2009

LUCRO COM A FLORESTA EM PÉ

Fábrica de camisinhas no Acre multiplica renda de seringueiros
Camila Nobrega*
Enviada especial a Xapuri, Acre
camila.alves@oglobo.com.br
Com o céu ainda cheio de estrelas, Nilson Mendes se levanta, toma um gole de café e, antes das três da madrugada, começa seu dia de trabalho, em meio à escuridão da floresta amazônica. Como os outros 85 seringueiros que trabalham no Seringal Cachoeira, no município de Xapuri, no Acre, ele pega sua "cabrita" (instrumento de extração) e passa pelas seringueiras, percorrendo 14 quilômetros diários dentro da floresta, sempre respeitando os dois dias de pausa necessários, para não exigir demais das árvores. Por volta das 9h, ele está de volta para recolher o que lhe rendeu no dia, carregando nas costas uma média de 15 litros de látex e no olhar o orgulho de ter retomado um ofício centenário que está promovendo o desenvolvimento econômico de Xapuri com base na floresta em pé.
Desde o início de 2008, a produção de látex ganhou novo impulso na região, trazendo uma valorização do produto pela qual eles lutavam há mais de 30 anos.
Uma fábrica de preservativos estatal instalada em Xapuri, a Natex, reativou a produção de látex na região, elevando em mais de 300% os preços pagos pelo quilo do produto e fazendo com que os seringueiros tirassem do armário as tradicionais botas de borracha. Durante alguns anos, quase todos substituíram essa rotina pela exploração de castanhas ou corte de madeira, fonte que, apesar de mais rentável, tem como base o desmatamento, que é marca da região. Prova disso é que, nos 188 km da estrada que liga a capital Rio Branco até Xapuri, só se vê floresta ao longe. As margens da estrada são a imagem de um grande pedaço da floresta que foi transformado em capim, principalmente para dar lugar à pecuária.
Nilson foi um dos seringueiros que havia parado de extrair látex, porque o produto colaborava muito pouco com o sustento da família. Criado com 18 irmãos, quase todos seringueiros, ele fez o primeiro corte em uma seringueira com apenas 6 anos, orientado pelo pai, e não estava satisfeito de ter que abandonar o ofício para lidar com motosserras e exploração da castanha. Aos 46 anos, ele conhece cada metro da floresta, guiado por árvores como castanheiras e samaúmas, das quais ele é capaz de dizer a idade só de olhar para o tamanho e a textura.
Hoje, Nilson complementa a renda guiando turistas e pesquisadores na Amazônia acreana. Mesmo assim, não esconde qual a função preferida: - Como seringueiro, você anda quilômetros, mas sente uma saúde imensa para si e para a floresta. É muito boa essa possibilidade de aumentar a renda com a extração do látex, que não agride a natureza.
Eu já sou a terceira geração da minha família que explora as mesmas árvores, sempre com cuidado.
Quase todos os seringueiros voltaram a trabalhar.
Paramos porque estávamos ganhando cerca de R$ 50 por mês vendendo o látex para fazer borracha, mas hoje ganhamos até R$ 400 por causa da fábrica de preservativos - disse ele, que, com a renda atual, consegue manter sua mulher e filha mais velha estudando em faculdades de Rio Branco.
Nilson é primo de primeiro grau de Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, que iniciou a luta por melhores condições de trabalho nos seringais brasileiros na década de 1970, quando começou a participar de movimentos para impedir o desmatamento, sendo acusado por fazendeiros e políticos de prejudicar o progresso no Acre. Já nessa época, Chico Mendes defendia a criação de reservas extrativistas para os seringueiros e de incentivos que agregassem valor ao látex e melhorassem a qualidade de vida da população.
O primeiro objetivo só foi atingido pouco mais de um ano após seu assassinato, com a criação da primeira reserva extrativista do país, em 1990, e o primeiro passo para a valorização do trabalho dos seringueiros só está ocorrendo agora.
Hoje, a fábrica de preservativos Natex já conta com 430 famílias de seringueiros cadastradas e quer atingir a meta de 700. Como fruto da parceria entre o governo federal e o governo do Acre e dos R$ 30 milhões investidos, a inauguração da fábrica de preservativos ocorreu em setembro de 2007 e, no início do ano seguinte, foi iniciada a distribuição de preservativos, que atingiu a casa dos 100 milhões de janeiro a dezembro de 2008. Essa quantia responde por 20% do total comprado pelo governo para distribuição gratuita, o que mostra que há espaço para aumentar a produção e empregar mais gente.
Muitas mulheres que antes praticamente não tinham opções de trabalho no município, hoje estão empregadas na fábrica de preservativos, onde são maioria. Com 150 funcionários, a Natex é o segundo maior empregador de Xapuri, perdendo apenas para o próprio município, como explica Kelma Castro, coordenadora operacional da fábrica: - Muitas dessas mulheres não tinham renda própria e agora têm orgulho de ajudar em casa.
O processo de implantação foi longo. Em 2003, o presidente Lula assinou um decreto para viabilizar a Natex, com o objetivo de agregar valor ao látex e empregar apenas pessoas da região em todo o processo produtivo, além de reduzir a importação de preservativos pelo Ministério da Saúde. Inicialmente, foram necessárias pesquisas para viabilizar a utilização do látex natural, já que a produção mundial é focada nas florestas de cultivo, cujo plantio é programado. Além disso, o cadastramento e as capacitações dos seringueiros são feitos desde 2003, para prepará-los para exigências de qualidade do produto. Cada um deles recebe um kit de extração, que garante o armazenamento adequado, e aprende noções de higiene necessárias para o processo.
No entanto, uma das metas ainda não alcançadas é usar a nova produção local como ferramenta de educação sexual. Segundo Kelma, boa parte da população nunca viu uma camisinha, e não faz controle algum de natalidade, informação que não é difícil constatar, pelo número de mulheres grávidas na região. Por lá, ainda é muito comum ver famílias imensas e mulheres jovens com vários filhos. A falta de proteção dificulta ainda mais a inserção delas no mercado de trabalho e mostra como estão expostas a doenças sexualmente transmissíveis. Para as que trabalham na fábrica, o conhecimento vem por meio do dia-a-dia, mas a população de cerca de 14 mil habitantes é carente de educação básica.
Mesmo assim, seis anos após o início do projeto, a instalação da fábrica já mudou a rotina do município.
Apesar de os seringueiros ainda complementarem a renda com o corte de madeira, por exemplo, a prioridade voltou a ser o látex. Com isso, se mantém a relação estreita dos moradores com a floresta, já que a atividade se baseia em um conhecimento minucioso da flora e fauna locais. Na palavra dos seringueiros, trata-se de uma questão de respeito.
Eles precisam das árvores de pé, hoje mais do que nunca. Há cerca de dois anos, o quilo de borracha seca, equivalente a dois litros de látex, era vendido a uma média de R$ 0,70. Hoje, a fábrica paga R$ 3,40 e, com o subsídio do governo, o valor chega a R$ 4,80. Com isso, em 2008 foram coletados mais de 12 mil litros de látex, contra apenas cerca de três mil em 2007. A qualidade de vida das famílias nos seringais melhorou bastante e hoje, para minimizar as imensas caminhadas diárias dentro da floresta, os seringueiros já contam com uma ajuda motorizada, já que para muitos as motos viraram sonho de consumo realizado.
Nos últimos meses, os seringueiros cadastrados na Natex e suas famílias têm sido levados para conhecer a fábrica e ver de perto o resultado final de seu trabalho. Com isso, eles têm a oportunidade de observar a confecção dos preservativos, desde a chegada do látex à fábrica até o fim da produção, já dentro de embalagens que indicam "látex natural da Amazônia". Para eles, o sentimento principal é o de inclusão, como explica Nilson Mendes: - Primeiro, as pessoas se deram conta de que tinham que cuidar da floresta, mas se esqueceram da gente. Hoje, veem o homem com a floresta. Consciência não se compra e nós somos instrumento de formação dessa consciência nas pessoas e de proteção da floresta.
Mas, apesar das mudanças que estão ocorrendo, ainda há um longo percurso a fazer, como afirma Elenira Mendes, filha de Chico Mendes e atual secretária de Meio Ambiente de Xapuri. Com muita dificuldade de se referir a ele como "meu pai", Elenira explica que gostaria que ele pudesse ver a melhoria na qualidade de vida dos seringueiros, uma de suas principais bandeiras na década de 1980. Mas, segundo ela, ainda é necessário ampliar os conceitos de sustentabilidade para os moradores da floresta, ressaltando que é possível extrair sem desmatar: - Os seringueiros estão vivendo de forma mais digna. Muitas famílias que haviam parado de extrair o látex hoje retomaram a atividade. Temos que incentivar esse tipo de exploração da floresta, que não desmata, preserva. Minha preocupação é o manejo florestal, pois é necessária muita fiscalização.
Os moradores precisam saber cuidar da terra.
Qualquer um pode defender a floresta. Meu pai era um seringueiro, não um super-herói.
*A repórter viajou a convite do Ministério do Turismo e da Braztoa

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"Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, e depois perdem o dinheiro para a recuperar. Por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem o presente, de tal forma que acabam por nem viver no presente nem no futuro.
Vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se não tivessem vivido..." (Confúcio)

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