sexta-feira, 28 de agosto de 2009

SALVAÇÃO DA LAVOURA

Por Silvia Torikachvili, para o Valor, de São Paulo

As previsões dos técnicos são pessimistas, algumas até catastróficas: o aquecimento global vai, sim, afetar a produção de alimentos. A intensidade é uma questão de tempo e de localização geográfica. Mas a parte boa desses prognósticos é que ainda há saídas, como diminuir a emissão dos gases de efeito estufa; desenvolver plantas geneticamente mais resistentes e investir recursos e tecnologia na agricultura familiar, responsável hoje por 85% de tudo o que os brasileiros comem.
O fortalecimento da produção familiar no campo foi uma aposta da cadeia Wal-Mart já em 2003. Fazia sentido. Além de garantir a sobrevivência do produtor rural, numa ponta, assegurava o abastecimento das lojas, na outra. As 14 famílias cadastradas então no Clube dos Produtores foram se multiplicando e, seis anos depois, são 4.427. Aquela aposta evoluiu e faz parte hoje do esforço da rede no enfrentamento das mudanças climáticas.
"Estamos à procura de agricultores atentos à qualidade de suas plantações", anuncia Sérgio Nóia, vice-presidente de produtos perecíveis do Wal-Mart. Em contrapartida, as famílias inscritas no Clube dos Produtores recebem aconselhamento técnico, contam com assessoria para planejamento de produção, logística e acesso aos grandes mercados. Todos lucram. "Os agricultores sabem que terão a venda assegurada e as lojas têm o abastecimento garantido", explica Nóia. "E tudo sem a figura do atravessador".
Essas 4.427 famílias de produtores estão espalhadas por 244 cidades de oito Estados e são responsáveis pelo abastecimento de 422 itens de hortifrútis, 73 de açougue e 61 de padaria.
O apoio à agricultura familiar é eficiente no enfrentamento das mudanças do clima, concorda Eduardo Assad, pesquisador da Embrapa. "Nessa prática artesanal as raízes são mais profundas, o que faz a lavoura consumir menos água; assim as espécies sofrem menos com a seca e têm maior rendimento", explica. "Além disso, a escala de trabalho na agricultura doméstica é bem menor, e pode fazer toda diferença nas intervenções e correções".
A produção familiar é campo fértil também para o uso de sistemas agroflorestais em que o pasto, as culturas e a floresta convivem no mesmo hectare de terra. "Agricultura e custo ambiental têm tudo a ver", diz Assad.
Depois de amargar décadas de exclusão da modernização dos métodos agrícolas, os pequenos agricultores estão hoje no foco da atenção dos governos e da iniciativa privada. "É mais barato investir na agricultura familiar e incentivar a permanência do produtor na terra do que arcar com o ônus da saída dele do campo", diz Adoniram Peraci, secretário nacional da agricultura familiar do Ministério da Agricultura. Nos anos 1960 a população rural brasileira chegava a 80%. Sem condições de sobrevivência, grandes levas migraram para cidades grandes e o contingente rural baixou para 17% no início do século. Ainda assim, Peraci aposta na revitalização da agricultura familiar.
"O consumo força a mudança de comportamento do comércio e da produção no mundo rural", diz. A pressão por uma alimentação mais saudável, a preferência por produtos orgânicos e a exigência da compra da merenda escolar no próprio município são demandas reais. Dos R$ 2,2 bilhões do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, 30% são destinados à compra de alimentos para a merenda escolar. São cerca de R$ 700 milhões injetados na agricultura doméstica em 2009. "É um mercado que ganha musculatura e oferece oportunidade a todos os produtores", diz Peraci.
Os produtores domésticos, que Peraci chama de estabelecimentos familiares, são cerca de 4 milhões no Brasil. São agricultores dispensados de licitação nos negócios com as prefeituras. Mas têm um limite: não podem ultrapassar R$ 9 mil por ano na comercialização com o poder público. A produção excedente é escoada pelas cooperativas, mas também pode ser vendida diretamente aos mercados. "A tendência é redescobrir o mundo rural, reencontrar a natureza, valorizar os pequenos municípios", diz Peraci.
Apostar nas pequenas comunidades e priorizar a agricultura são as ações básicas do projeto-piloto que o governo do Piauí desenvolve em parceria com a CareBrasil. O ponto de partida é o investimento na segurança hídrica e na segurança ambiental como forma de garantir a segurança alimentar, segundo o diretor da Care, Markus Brose.
A capacitação começou pela Defesa Civil. "É preciso construir galpões para estocar alimentos", diz. "É assim que o Piauí vai enfrentar catástrofes como as enchentes deste ano." O programa tem muitos desdobramentos: formação do agricultor como profissional da terra, empreendedorismo juvenil no meio rural e recuperação dos mangues e matas ciliares.
"O Piauí desenvolve um grande programa de ligação entre mudanças climáticas e segurança alimentar", diz Brose. A escola de agricultores forma 70 alunos por ano ao custo de R$ 200 mil e, segundo Brose, deve ser autossustentável dentro de 5 a 7 anos. O projeto introduziu também os biodigestores no meio rural. É assim que os dejetos se transformam em gás para a cozinha e geram energia elétrica. "É uma das experiências mais importantes do semiárido e pode ser replicada em muitos Estados do Nordeste", garante Brose.
Na Fundação Banco do Brasil, a experiência do PAIS (Programa de Produção Agro-Ecológica Integrada e Sustentável) teve início em 2005 com parceria do Sebrae e do Ministério de Integração Nacional. São 4 mil as famílias apoiadas pelo programa, a um custo de R$ 900 mil/ano. "O objetivo é dar suporte ao pequeno agricultor para que garanta a sobrevivência de forma sustentável", explica Jorge Streit, diretor de desenvolvimento social da Fundação. "Quando consegue a segurança alimentar da própria família, o agricultor vende a produção excedente."
A agricultura familiar tem tudo para prosperar. "Não agride o solo, dispensa produtos químicos, valoriza a compostagem, a permacultura, o reuso da água; de quebra, garante a geração de renda", diz Streit. É a atitude mais racional em tempos de crise hídrica, energética e alimentar, concorda Crispim Moreira, secretário nacional da segurança alimentar e nutricional do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Para garantir a produção, distribuição e acesso de toda a população ao alimento, Crispim aponta algumas saídas - entre elas reforçar o sistema agroindustrial. Os 4 milhões de pequenos proprietários rurais e suas famílias somam um contingente de 20 milhões de pessoas que garantem a alimentação de quase 150 milhões de brasileiros, ele calcula. Por isso, Crispim acredita que a atividade familiar rural pode representar um grande salto de desenvolvimento. "Os negócios feitos na própria região engrossam a demanda, movimentam a economia local e disparam o desenvolvimento social", diz. Mais: oferecem a esses milhões de famílias a oportunidade de fornecer diretamente ao Programa Nacional de Merenda Escolar.
Para enfrentar cenários que apontam para aumentos de temperatura de até 5° C e níveis de chuva entre 5% e 15% mais elevados, os estudos não têm fim. Ainda é muito difícil prever como se comportará cada região assolada pelas mudanças climáticas - mesmo para técnicos que fazem prognósticos planetários, como o professor Walter Belik, vinculado ao Instituto de Economia da Unicamp. Há pontos do planeta, como América Latina, África e Ásia, em que o avanço da desertificação é inexorável, segundo ele. Em contrapartida, diz, o norte do Canadá e a Sibéria, regiões conhecidas por estar sempre debaixo da neve, poderão entrar no mapa das áreas agricultáveis, justamente por causa das alterações do clima.
As políticas protecionistas e as barreiras comerciais também tendem a mudar com a crise de alimentos. Belik prevê que muitos governos que sempre apostaram nos subsídios para garantir a alimentação básica vão mudar de posição. "A segurança alimentar baseada na autossuficiência vai ficar cada vez mais difícil porque os países estão cada vez mais interdependentes." Uma das adaptações mais importantes, segundo Eduardo Assad, da Embrapa, é a mudança da matriz energética. "O Brasil produz o etanol da cana, oito vezes mais eficiente que o petróleo." O produto reduz em média 89% de gases de efeito estufa contra 46% do etanol da beterraba e 31% do etanol do milho. Desde 2003, cerca de 45 milhões de toneladas de CO2 deixaram de ser emitidas, conforme a União da Indústria de Cana-de-Açúcar.
Fonte: VALOR ECONÔMICO -SP, 28/08/2009

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